segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O enfermeiro, o ‘doutô’ e o acidente

Ao final vai parecer piada, mas o causo é verídico. No dia não foi bem assim, mas foi parecido. É que esse tipo de história a gente escuta e já conta de outra forma. Não de propósito, mas sempre passa um detalhezinho a mais ou a menos. E olha que o rapaz que me contou já ouviu de um outro, que por sua vez soube por um amigo do primo de seu vizinho. E cá entre nós, esse amigo num é muito certo das idéias não. De qualquer forma aconteceu, dizem.

A primeira parte tem início num boteco no centro histórico de Salvador. Lá está o ‘doutor médico’ Julio Dias, o Julião. Sessentão, cabeleira farta, físico cansado, saúde decadente. Mas disposição e bom humor não lhe faltam. Se está com os amigos ‘tomando uma’ então, é risadaria pra todo lado. Conceituado, carrega no currículo mais de trinta anos de medicina, centenas de vidas salvas, milhares de doenças curadas, mais um monte de conselhos dados e engradados de cerveja consumidos. “Mas nunca fumei!”, se orgulha.

Pinguço todo, não dispensa a companhia de seu braço direito: o enfermeiro e amigo Ninho. Mulato, franzino, a cara de assustado e o jeito afobado lhe são peculiares. Em tudo concorda com Julião. Seu nome correto poucos sabem. Também nem pergunte. “Só Ninho mesmo, ‘praquê’ mais?”, diz logo nervoso. Talvez carregue consigo um fardo. Um nome escabroso. No interior tem dessas coisas.

É, eles são do interior. De um município chamado Sátiro Dias, situado no Nordeste da Bahia, a uns 205 quilômetros da capital. Lá se passa a segunda parte da história. Ou melhor, numa estrada próxima a um povoado pertinho de lá. De nome sugestivo: Mimoso. Um lugarzinho (e bota ‘inho’ nisso) onde todos se conhecem, todos se veem todos os dias, todos vão à missa aos domingos, todos sabem de tudo uns dos outros.

Estamos no final da tarde de sábado. Enquanto o ‘doutô’ Julião termina de ‘encher a cara’ com o inseparável Ninho, três dezenas de bóias-frias amontoam tudo o que colheram em mais um cansativo dia de trabalho na roça. À beira da estrada entre o Mimoso e Sátiro Dias, um pau-de-arara os espera. Caminhãozinho velho, corroído pelo tempo. Verdadeira sucata, quem o vê parado nem imagina que é capaz de se mover. E vai levar todo mundo pra cidade.

Já é noite quando o doutor e o enfermeiro tomam o rumo de volta à terra de origem. Já é noite e os trabalhadores da roça seguem carregando o caminhão com sacos e mais sacos de tudo que é fruta e verdura. Falta pouco até que todos se cruzem.

Mais algumas horas e a velharia parte conduzindo bóias-frias e colheita. Na escuridão nada se vê. Os faróis estão danificados. A estrada é boa, mas o relevo é instável. Subidas, descidas, curvas acentuadas. Numa delas acontece o inesperado. Uma tragédia. Algo que se não tivesse ocorrido eu nem tinha começado com essa prosa toda.

O veículo chega ao meio da curva quando um animal atravessa a pista. O motorista tenta desviar. Até consegue, mas capota. O resultado não poderia ser diferente: pela via estreita os pobre-coitados vão caindo e rolando. Por entre eles é laranja prum lado, jaca pro outro...uma novela só.

O silêncio da madrugada é interrompido por gritos e mais gritos de socorro. Gritos altos e vazios. No meio do nada as esperanças de ajuda são poucas. Celular ninguém tem. É ‘coisa de barão’. E mesmo que tivesse, lá não pega. A cena é triste. Os homens tentam reanimar os feridos mais graves de alguma forma, as senhoras rezam com fervor, as crianças choram. Todos torcem por um milagre.

A meio quilômetro dali Julião e Ninho não veem a hora de chegar em casa. Rever amigos, familiares, contar como foi passar o dia na capital. Até então uma viagem tranqüila, sem maiores problemas. Por sorte nenhuma blitz. Não é tempo de ‘lei-seca’, mas do jeito que está é que não dá pra ficar (e muito menos pra dirigir).

- “Ô Ninho, que é aquilo ali? Acho que bebi demais e tô vendo coisa”, exclama Julião arregalando os olhos.

- “Eita doutô, tem um caminhão ‘virado’. É acidente! Para, para!”, se desespera o enfermeiro.

Julião então encosta o veículo e os dois vão prestar socorro.

- “E agora, é muito ferido pra pouco doutô!”, lamenta Ninho.

- “Ô Ninho, para de falar besteira e faz o seguinte: na direita do caminhão você põe quem ‘já foi’ e na esquerda os feridos. Bora organizar essa 'bodega' aqui pra salvar quem ainda tem chance”, exclama o doutor.

Uns pra lá, outros pra cá. Devagarzinho, com cuidado, tudo vai se ajeitando. A situação vai sendo controlada. Para alívio geral, um outro carro passa e o motorista se compromete em encaminhar uma ambulância assim que chegar a Sátiro.

Falta pouco, e eis que aí surge o inusitado.

- “Ninho, olha pra cá: num dá pra esse aqui mais não, leva pra direita que já vou socorrendo aquele”, aponta o médico dando as últimas orientações.

Certo do que está fazendo (afinal quem mandou foi o ‘doutô’), lá vai Ninho segurando firme a perna e arrastando mais um defunto, levando-o para o local indicado. “Ôxe, tem coisa errada aqui”, reflete ao perceber algo atípico em se tratanto de um falecido: o homem se mexe. “Ei rapaz, eu tô vivo! Ta me puxando pra onde?!”, diz agoniado – mesmo no chão, em estado de choque, ele havia escutado as orientações do médico. “Me leva pro outro lado ‘fi da pé’, num ta vendo que o doutô pode me ‘sarvar’”.

O rapaz esperneia, tenta explicar de todo jeito, quer apenas provar que está vivo, coitado. Mas Ninho é irredutível. O que está em jogo ali é a palavra de seu amigo, patrão e grande ídolo. Ele nem pensa duas vezes antes de contestar o ‘morto-vivo’: “E você quer saber mais que o doutô é 'homi'?!”.

Sátiro Dias é a terra natal de toda a familia de minha mãe, a dona Márcia. Essa história me foi contada pelo meu tio Marcelo Torres - grande jornalista que hoje mora em Brasília - quando estivemos juntos no início deste ano.

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